A Lei n. 12.850/2013 trouxe muitas inovações no combate qualificado às organizações criminosas e crimes afins. Não só por trazer outras ferramentas de busca por fontes de provas, mas também por criminalizar condutas que ordinariamente orbitam em torno da existência e da manutenção dos referidos grupos criminosos.

Adriano Costa: Colunista Pleno da Plataforma Delegados de Excelência
Adriano Costa: Colunista Pleno da Plataforma Delegados de Excelência

Os crimes elencados na Lei n. 12.850/2013 não se resumem à criminalização de quem participa ou auxilia (de alguma sorte) tal tipo de sociedade criminosa (artigo 2º, caput e parágrafo 1º); na verdade, algumas incriminações atingem agentes (inclusive os públicos) que violam alguns aspectos procedimentais fomentados na própria lei.

Esse é o caso de quem descumpre sigilo das investigações que envolvam a ação controlada e a infiltração de agentes (artigo 20), quem revela a identidade, fotografar ou filmar o colaborador, sem sua prévia autorização por escrito (artigo 18) e, por fim, quem recusa ou omite dados requisitados pelos agentes da investigação e da persecução penal (artigo 21).

Mas o núcleo duro da lei acaba reservando posição mais gravosa àqueles que atrapalham deliberadamente a já tão complicada investigação de organizações criminosas (e crimes vinculados). Aqui, o modo de realização criminosa é livre, e não vinculado a uma específica forma de agir. Vejamos:

 

Art. 2º Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa: § 1º Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa. (Lei n. 12.850/2013).

 

E é sobre tal forma de obstrução ou impedimento que debruçaremos maior atenção, porquanto, por ser mais elástico, garante maior abrangência às discussões travadas neste artigo.

Em primeiro turno é preciso dizer que, por mais que o texto legal tenha mencionado unicamente o embaraço à investigação, percebemos que tal limitação foi indevida. Afinal, a intervenção ao longo do processo penal deve ser igualmente combatida. De toda sorte, apesar de vermos com reservas o elastério punitivo (por meio de interpretação extensiva, por exemplo), o Superior Tribunal de Justiça já se posiciona sobre a incidência de tal dispositivo também no caso de embaraços à ação penal (HC 487962 – STJ).

Analisando os núcleos do tipo penal percebe-se que se resumem às condutas de “impedir” ou de, de qualquer forma, “embaraçar” a investigação. Perceba-se que se trata de crime de ação múltipla ou de conteúdo variado, ou seja, quem embaraça e, ao final, consegue impedir a investigação, responde por crime único.

A construção legislativa praticamente sufraga a possibilidade de ocorrência de tentativa na modalidade impedir, vez que de difícil é a configuração da tentativa de impedimento que não seja igualmente um embaraço. Daí, em homenagem à alternatividade típica, incide o núcleo mais específico (embaraçar) na sua modalidade consumada, e não a tentativa de impedimento.

O crime em comento não é próprio, nem muito menos de mão própria. Isso porque não se requer qualquer qualidade específica do autor do fato, nem muito menos que ele execute diretamente os verbos nucleares do tipo. Inclusive, não precisa nem integrar o grupo criminoso; pode ser o advogado de um dos envolvidos, por exemplo.

Na verdade, o autor da obstrução pode não ter tido qualquer contato com membros da organização criminosa; contudo, basta que deseje de alguma forma atrapalhar a investigação, pelo motivo que seja. É preciso perceber que não se requer qualquer elemento subjetivo especial do injusto, bastando vontade livre e consciência de obstruir a investigação.

O impedimento ou embaraçamento aqui tratados não pode se servir à criminalização da advocacia, ao se confundir o exercício regular de direitos do investigado (e seu causídico) com atos de obstrução. Por exemplo, a interposição de recursos (ainda que meramente protelatórios) não pode se confundir com tal sorte de incriminação.

E o ato de embaraçamento não precisa ser dirigido necessariamente contra um ator da investigação ou da persecução penal, porquanto o ataque a pessoas próximas a eles, se for hábil a gerar embaraços à investigação, é suficiente para tanto. Por exemplo, as ameaças de morte à esposa de Promotor de Justiça incumbido de um processo criminal que envolva organização criminosa.

Na verdade, os próprios agentes públicos envolvidos na investigação ou no processo podem se autossabotar, com vistas a gerar embaraços ao trabalho que deveriam fazer. É o que nominamos de auto-obstrução deliberada. Por isso, o bem jurídico tutelado não é a liberdade pessoal do agente envolvido na investigação, mas sim a Administração da Justiça e a Paz Pública.

Outrossim, não se nega que é possível haver uma organização criminosa voltada à prática de obstruções. Por exemplo, quando um determinado grupo estável de servidores públicos atrapalham investigações para evitar impactos eleitorais deletérios no grupo político que lhe concedeu cargos na estrutura governamental, utilizado-se amiúde de seu poder hierárquico para tanto. A intenção é se manter no poder, no caso. É o que chamamos de obstrução organizativa. Nesse caso, por óbvio, tanto respondem os suspeitos pela integração em tal sorte de grupo criminoso (artigo 2º, caput), como também por cada uma das interferências em investigações específicas (artigo 2º, parágrafo 1º), já que tais dispositivos não são alternativos entre si.

E, dentre as formas de obstrução organizativa, podemos citar algumas: 1- por meio de remoção de servidores envolvidos na investigação e na persecução criminais (embaraçamento estrutural); 2- por meio de vazamento de informações de investigações que retirem o caráter velado da investigação, causando dificuldades na descoberta de elementos alcançáveis por cautelares (embaraçamento de chance probatória); 3- por meio da cobrança de celeridade na conclusão das investigações com o fito de não se permitir o alcançamento de pessoas em escala hierárquica superior (embaraçamento por velocidade); 4- por meio do pedido de retardamento de investigações visando a perda da chance probatória e o incremento das chances de prescrição (embaraçamento por procrastinação); 5- por meio da oferta de valores e de vantagens aos agentes incumbidos da investigação ou da persecução (embaraçamento por corrupção); 6- por meio da cobrança para o encaminhamento de informações sobre a existência e o andamento de investigações com o fito de violar-lhes o sigilo a quem possa ter interesse (embaraçamento por planilhamento); 7- por meio de rigor excessivo e assédio moral a servidores (bem como a familiares e pessoas próximas) que estejam  envolvidos na investigação ou persecução penal (embaraçamento por assédio).

Perceba-se que o embaraço ou o impedimento podem se dirigir a investigações de qualquer infração penal que de alguma forma se entrelace a um organização criminosa. Se não fosse assim, o legislador deveria ter optado pela seguinte expressão: “embaraça a investigação de organização criminosa”.

No caso de a obstrução ser dirigida à própria investigação do grupo criminoso principal, razão maior para fazer incidir o crime do artigo 2º, caput. Mas o que se espera deixar claro é que não necessariamente o fato em investigação (e que é atrapalhado) precisa estar vinculado à capitulação prevista no caput do artigo 2º da Lei n. 12.850/2013, mas somente que tal crime de alguma forma se relacione com uma organização criminosa.

Por exemplo, a obstrução de investigação de um homicídio encomendado por ordem de agente público influente, o qual delegou a execução direta do crime a uma organização criminosa armada, configura tal delito. Fato é que, mesmo que o obstrutor não participe do grupo criminoso em comento, o crime de lesa-vida se vincula à sociedade criminosa, o que faz incidir a norma penal incriminadora em debate.

E, nesse caso específico, o instituto da justa causa duplicada surge como um requisito importante. Isso porque a existência fática da referida sociedade criminosa (ainda que não se exija a denúncia ou a condenação pelo crime do Art. 2º, § 1º) precisará ser evidenciada minimamente na denúncia do crime de obstrução. 

Fato é que o agente que vai promover essa interferência precisa saber dessa circunstância, ou seja, que de alguma forma o crime em tela está conectado à intervenção de uma societatis sceleris desse calibre. Até mesmo para a configuração dos elementos cognitivo e volitivo do dolo.

Outro ponto importante é que o fato em investigação sequer precisa ser um crime, porquanto o uso da terminologia “infração penal” deixa em aberto que as contravenções penais também podem servir como pano de fundo hábil a incidir tal tipo penal incriminador.

Tal modalidade não incide se praticada com culpa. Contudo, nada impede a ocorrência do crime comissivo por omissão, ou seja, quando a omissão respectiva se equipara à ações previstas no tipo penal. Fato é que o agente precisa omitir um dever de ofício sabendo e desejando que isso impacte negativamente nas investigações. É o que se nomina obstrução comissiva por omissão.

É claro que o agente obstrutor deve desejar prejuízos na produção de elementos, independentemente de seus motivos serem nobres ou não.

Além da incidência das penas do tipo penal em comento, há que ressaltar a necessidade de fazer incidir outras violações perpetradas pelo obstrutor no presente contexto, principalmente quando se tratar de agentes públicos. 

Por exemplo, outros crimes contra a administração pública e da justiça (prevaricação, tráfico de influência, exploração de prestígio, violação de sigilo funcional, corrupção passiva etc.) todas a ser em cumulados com a violação aqui debatida. Por mais que defendamos ser o referido crime pluriofensivo, não reputamos que o bem jurídico tutelado por tal norma penal seja  preponderantemente a administração da justiça, mas  sim a Paz Pública (a exemplo do artigo 2º, caput), porquanto é de maior interesse do Estado evitar infrações vinculadas a tal sorte de criminalidade organizada.

Por fim, o STJ entendeu recentemente que tal modalidade criminosa é material, requerendo-se  uma alteração sensível no trajeto normal da investigação (alteração no mundo naturalístico), ainda que isso seja momentâneo ou reversível.

 

“A adoção da corrente que classifica o delito como crime material se explica porque o verbo ‘embaraçar’ atrai um resultado, ou seja, uma alteração do seu objeto. Na hipótese normativa, o objeto é a investigação, que pode se dar na fase de inquérito ou na instrução da ação penal, ou seja, haverá embaraço à investigação se algum resultado, ainda que momentâneo e reversível, for constatado”. (RECURSO ESPECIAL No 1.817.416 – SC – STJ)

 

Não se pode confundir a necessidade de haver uma alteração naturalística derivada da conduta do obstrutor com a necessidade de comprovação de prejuízo concreto e demonstrado à investigação.

Por exemplo, a remoção imotivada dos policiais responsáveis pela investigações é nitidamente um resultado naturalístico da conduta do obstrutor, alterando-se o curso normal da investigação.  Fato é que isso pode gerar prejuízos para a investigação. Ainda assim a prova de tal prejuízo não é cartesiana, mas sim probabilística (bayesiana). Por isso caminhou bem o STJ ao requerer somente a indicação de ato concreto de obstrução que retira do prumo normal a trajetória investigativa (que configura o resultado naturalístico), mas não solicitando prova de prejuízo, porquanto ele parece presumido pela própria intervenção indevida.

 

O autor:

 

Adriano Sousa Costa

é delegado de Polícia Civil de Goiás, autor pela “Juspodivm e Impetus”, professor da pós-graduação da Verbo Jurídico, MeuCurso e Cers, membro da Academia Goiana de Direito, doutor em Ciência Política pela UnB e mestre em Ciência Política pela UFG.

 

 

 

 

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