Dentre as diversas alterações da minirreforma do Código Penal Militar (Lei n. 14.688/2023), uma delas chamou mais a atenção pela sua tentativa histórica de sucesso. Por isso, a iniciativa de conferir às Polícias Militares a possibilidade de investigar os seus próprios confrontos mereceu destaque aqui, muito também pela sua capacidade de subverter a estrutura do sistema.

Trata-se de um intricado jogo sucessivo de inserção de expressões em dispositivos legais, com foco especial no do artigo 9º do Código Penal Militar, pela função primordial que ele exerce na determinação legal do que é crime militar. No presente caso, parece ter passado despercebido pelo Congresso Nacional, que enviou o texto à sanção presidencial. Se aprovado, promoveria um retrocesso histórico no sistema de investigação policial.
Não se nega que sempre foi uma das principais lutas das polícias militares a capacidade de investigar crimes de homicídio cometidos por eles mesmos em situação de supostos confrontos, pois isso lhes garantiria o afastamento do incômodo heterocontrole das polícias de natureza civil.
De toda forma, é preciso compreender o caminho histórico que nos trouxe à Lei n. 14.688/2023. Vejamos:
A Lei n. 9.299/96
Um dos primeiros dispositivos a fundamentar essa pretensão investigatória das polícias militares encontra-se no artigo 82, § 2º, do Código de Processo Penal Militar (CPPM):
Art. 82. § 2° Nos crimes dolosos contra a vida praticados contra civis, a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum. (Parágrafo incluído pela Lei nº 9.299, de 7.8.1996. Sem grifos no original).

É fundamental destacar que esse dispositivo não deve ser (e nem o foi) interpretado isoladamente, mas sim à luz de sua finalidade, pois a Lei n. 9.299/96 não apenas introduziu a redação acima no CPPM, como também modificou o parágrafo único do artigo 9º do Código Penal Militar (CPM), que passou a afirmar: “Os crimes a que se refere este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civis, serão da competência da justiça comum.”
Analisados em conjunto, portanto, ficava clara a natureza comum dessa sorte de crimes, tornando-se ilógico que as investigações fossem conduzidas pela Polícia Militar, por meio do Inquérito Policial Militar (IPM). Afinal de contas, a investigação criminal é uma parte relevante da persecutio, pois dificilmente algo diferente do que foi coletado na fase de investigação não vai ser replicado na fase de ação penal. A investigação é a bússola do processo, gizamos.
Portanto, a interpretação que foi tida como mais coerente foi a de que o artigo 82, parágrafo 2º, estabelecia, no caso em que o coubesse, a transferência de procedimentos investigativos em curso na jurisdição militar para a esfera da justiça comum.
E todo esse imbróglio levou as instituições militares a buscarem uma nova alteração legislativa, culminando na promulgação da Lei nº. 13.491/2017.
A Lei n. 13.491/2017
Em uma nova empreitada legislativa, as polícias militares conseguiram impulsionar a Lei nº. 13.491/2017. Ela reformulou o sistema anterior de dupla tipicidade, pois o artigo 9º, II do CPM passou a prever que seriam considerados delitos militares “os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal” (grifamos). Ou seja, praticamente todas as condutas ilícitas realizadas por policiais militares em serviço seriam rotuladas como crimes militares.

Passou-se a reconhecer que condutas perpetradas por militares, no exercício de suas funções ou em locais sujeitos à administração militar, independentemente da natureza do diploma normativo que a proibissem, seriam consideradas crimes militares e, por isso, investigados e processados pelos órgãos castrenses.
Entretanto, em relação aos crimes dolosos contra a vida, as mudanças trazidas pela Lei n. 13.491/2017 foram meramente terminológicas, pois não conseguiram se afastar daquela impressão de que os crimes dolosos contra a vida de civis tinham natureza de crime comum. Essa afirmação pode ser percebida pelo fato de que a única mudança realizada foi a troca da expressão “serão da competência da justiça comum” por “serão da competência do Tribunal do Júri”.
Art. 9º. § 1º Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri. (CPM)
E essa expansão do conceito de crimes militares e, consequentemente, da atribuição da polícia judiciária militar para investigar tais delitos castrenses, ocasionou enorme celeuma no mundo jurídico, destacando-se a discussão sobre o recrudescimento do poder das corporações militares em detrimento das civis. Nesse sentido, foram propostas duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade no STF (ADI 5.032 e 5.901, por exemplo).
O imbróglio maior ocorreu devido ao uso inadequado de uma prerrogativa legal pelo chefe do Executivo. Por meio do veto ao artigo 2º, determinou que a lei, que deveria ser temporária, pois possuía prazo de vigência até 31/12/2016, passou a ser definitiva, pois esse era justamente o dispositivo que a caracterizava como uma norma com prazo certo de vigência. Em outras palavras, o que o Presidente da República fez foi desnaturar a essência da lei, o que culminou, inclusive, com a retirada da competência do Tribunal do Júri em relação aos membros das Forças Armadas.
A Lei n. 14.688/2023
Quanto à minirreforma introduzida pela Lei nº. 14.688/2023, percebe-se que ela buscava avançar ainda mais do que a Lei nº 13.491/2017, especialmente no que diz respeito à investigação militarizada de crimes dolosos contra a vida.
Basta comparar a redação dada pela Lei n. 13.491/2017 com a que se pretendia aprovar agora, mas que foi vetada adequadamente pelo Presidente da República. A nova lei estabelecia que:
Art. 9º § 1º Os crimes militares de que trata este artigo, mesmo que previstos na legislação penal, nos termos do inciso II do caput deste artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri. (CPM).
Observe que, por meio de uma manobra terminológica dissimulada, estava-se deixando claro que crimes dolosos contra a vida seriam considerados crimes militares, embora devessem ser remetidos ao Tribunal do Júri para julgamento. Isso tem um significado simbólico importante para a investigação, mesmo que aparentemente não afetasse o processo perante o Júri.
O interesse de constar a terminologia “crimes militares” expressamente nesse dispositivo era o de evitar que a investigação de tais delitos ficasse a cargo das polícias civis e federal. Isso porque o artigo 144, parágrafo 4º, da CF, determina que as polícias civis e federal não podem investigar infrações militares.
Portanto, embora o julgamento competisse ao Tribunal do Júri, caberia às Polícias Militares investigarem os crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis. E aí reside o grande problema: o procedimento de coleta de provas seria realizado pelas próprias instituições militares e por meio dos Inquéritos Policiais Militares (IPMs). A estratégia, sem dúvida, era alcançar a tão desejada interpretação conferida por alguns, em atividade eminentemente corporativista, ao contestável art. 82, parágrafo 2º, do CPPM.
O Veto Presidencial
É primordial destacar as razões do veto ao parágrafo 1º do Art. 9º do CPM. Esses fundamentos refletem uma notável maturidade por parte do Poder Executivo diante dos riscos que seriam criados, além de um possível aumento significativo de confrontos policiais, que, por sua vez, poderiam tornar-se cada vez menos sujeitos a controles democráticos externos (heterocontroles).
Por isso é que não se deve permitir nenhuma manipulação terminológica que possa ameaçar um dos princípios mais importantes da Constituição Federal, qual seja o da assimetria estrutural-democrática. Afinal, conforme esse princípio:
Não podem organizações militares realizar atos típicos de corporações civis, sob pena de malferimento do princípio da assimetria estrutural-democrática. Tal princípio veicula a ideia de que o poder não só deve estar nas mãos do povo, mas, principalmente, que, dentre as corporações que compõem a trama do Estado, haja prevalência das atribuições daquelas constitucionalmente mais democráticas. Assim evita-se a banalização do emprego de violência em ações típicas das corporações, bem como se facilita o controle finalístico e republicano das agências. Essa assimetria visa a evitar a subversão democrática por meio de processo contínuo de militarização das corporações e das instituições1.
E é precisamente nesse contexto que surge o providencial veto. Vejamos:
“Não obstante a boa intenção do legislador, a proposição legislativa contraria o interesse público ao permitir a interpretação equivocada de que crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis constituem infrações penais militares, em vez de infrações penais comuns, cuja competência é do Tribunal do Júri.
Além de contradizer o entendimento majoritário da doutrina e da jurisprudência sobre o tema, a medida aumentaria a insegurança jurídica em torno da atribuição da investigação desses delitos à Polícia Civil ou à Polícia Militar.”
Com efeito, optar pela militarização das investigações representaria um retrocesso histórico, pois, no cenário atual, a desmilitarização da apuração de delitos e das próprias operações de policiamento ostensivo está sendo promovida e respaldada por diversas instituições, tanto nacionais quanto internacionais, comprometidas com a proteção dos direitos humanos.
Entre essas instituições estão o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Anistia Internacional e a Secretaria Nacional de Direitos Humanos.
Ademais, o veto presidencial está em conformidade com as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que já se manifestou sobre a importância de restringir a jurisdição da Justiça Militar. Além disso, a Corte enfatizou que o pleno funcionamento da Justiça Militar deve ser reservado apenas para situações de guerra. Ou seja, durante tempos de paz, a Justiça Militar deve focar estritamente em suas funções essenciais para a preservação da soberania nacional2.
A propósito, não se pode olvidar que o Brasil já foi condenado pela CIDH por ter utilizado o foro militar para examinar caso de crime praticado por militar contra civil.
Referências:
1. FONTES, Eduardo; HOFFMANN, Henrique, COSTA, Adriano Sousa. TÁVORA, Nestor; HABIB, Gabriel; ALVES, Leonardo Barreto Moreira; ARAÚJO, Fábio Roque; MASSON, Nathalia; DAVID, Ivana; ANSELMO, Márcio Adriano. Segurança Pública: Modelos e Evolução. Salvador: Juspodivm, 2022
2. Foi assim no caso Durand e Ugarte vs. Peru, no qual expôs a Corte IDH que: 117. En un Estado democrático de Derecho la jurisdicción penal militar ha de tener un alcance restrictivo y excepcional y estar encaminada a la protección de intereses jurídicos especiales, vinculados com las funciones que la ley asigna a las fuerzas militares. Así, debe estar excluido del ámbito de la jurisdicción militar el juzgamiento de civiles y sólo debe juzgar a militares por la comisión de delitos o faltas que por su propria naturaleza atenten contra bienes jurídicos proprios del orden militar. Idêntico posicionamento da Corte IDH pôde ser visto no caso Radilla Pacheco vs. México: 272. El Tribunal considera pertinente señalar que reiteradamente1 ha establecido que la jurisdicción penal militar en los Estados democráticos, en tiempos de paz, ha tendido a reducirse e incluso a desaparecer, por lo cual, en caso de que un Estado la conserve, su utilización debe ser mínima, según sea estrictamente necesario, y debe encontrarse inspirada en los principios y garantías que rigen el derecho penal moderno. En un Estado democrático de derecho, la jurisdicción penal militar ha de tener un alcance restrictivo y excepcional y estar encaminada a la protección de intereses jurídicos especiales, vinculados a las funciones propias de las fuerzas militares. Por ello, el Tribunal ha señalado anteriormente que en el fuero militar sólo se debe juzgar a militares activos por la comisión de delitos o faltas que por su propia naturaliza atenten contra bienes jurídicos propios del orden militar. […] 274. En consecuencia, tomando en cuenta la jurisprudencia constante de este Tribunal, debe concluirse que si los actos delictivos cometidos por una persona que ostente la calidad de militar en activo no afectan los bienes jurídicos de la esfera castrense, dicha persona debe ser siempre juzgada por tribunales ordinarios. En este sentido, frente a situaciones que vulneren derechos humanos de civiles bajo ninguna circunstância puede operar la jurisdicción militar. Em sentido semelhante, cf. casos Cruz Sánchez e Outros vs. Peru; e Nadege Dorzema e outros vs. República Dominicana.
Os autores:
Adriano Sousa Costa é Delegado de Polícia Civil de Goiás, autor pela Juspodivm e Impetus, professor da pós-graduação, membro da Academia Goiana de Direito, doutor em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Goiás (UFG).
Eduardo Fontes é Delegado de Polícia Federal, ex-superintendente da Polícia Federal no estado de Amazonas, autor de obras jurídicas pela Juspodivm, professor de ciências criminais, professor da Academia Nacional de Polícia, especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos pelo Ministério da Justiça, mestrando em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidade Portucalense, coordenador do Iberojur no Brasil, aprovado nos concursos de procurador do Estado de São Paulo e delegado de Polícia Civil no Paraná.
Ivana David é desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, professora convidada do curso de Direito Digital – Investigação de Crimes Digital do Insper/Executiva, da Ebradi e do Instituto NewLaw e coordenadora do curso de pós-graduação em Direito Digital do MeuCurso.
Nota referencial: artigo publicado originalmente no site do Jornal o Estadão no Blog do Fausto Macedo (https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/o-veto-presidencial-a-lei-n-146882023-e-o-principio-da-assimetria-estrutural-democratica/)