A Lei nº 14.612/2023 acrescentou no artigo 34 da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da OAB) uma relevante infração ético-disciplinar, qual seja, a prática de assédio moral, assédio sexual ou discriminação (inciso XXX) por advogados devidamente inscritos ou estagiários.
É válido lembrar que existiram diversas tentativas legislativas de tipificar o crime de assédio moral no Código Penal. Talvez a mais conhecida seja a insculpida no Projeto de Lei nº 4.742/2001, a qual disciplinava:
“Assédio Moral no TrabalhoArt. 146-A. Desqualificar reiteradamente, por meio de palavras, gestos ou atitudes, a auto-estima, a segurança ou a imagem do servidor público ou empregado em razão de vínculo hierárquico funcional ou laboral. Pena: Detenção de (3 (três) meses a um ano e multa.”

Fato é que o referido projeto de lei foi aprovado na Câmara dos Deputados e espera, pacientemente, por quase duas décadas, o andamento útil no processo legislativo em curso no Senado [1].
Ainda que não haja crime específico para tanto, é possível a combinação de tal infração administrativa com crimes elencados no Código Penal, a exemplo do stalking (artigo 147-A do Código Penal), da violência psicológica contra a mulher (artigo 147-B do Código Penal) e da injúria (artigo 140 do Código Penal).
De fato, é importante perceber que a alteração aqui debatida tem mais a ver com a jurisdição disciplinar dos advogados do que com os crimes que a isso podem estar jungidos. E, para os efeitos do regramento disciplinar em comento, considera-se assédio moral:
“Art. 34, §2º, I – a conduta praticada no exercício profissional ou em razão dele, por meio da repetição deliberada de gestos, palavras faladas ou escritas ou comportamentos que exponham o estagiário, o advogado ou qualquer outro profissional que esteja prestando seus serviços a situações humilhantes e constrangedoras, capazes de lhes causar ofensa à personalidade, à dignidade e à integridade psíquica ou física, com o objetivo de excluí-los das suas funções ou de desestabilizá-los emocionalmente, deteriorando o ambiente profissional; (Incluído pela Lei nº 14.612, de 2023)“
A aplicação do referido dispositivo requer repetição, e não habitualidade. Não incide em face de um único ato isolado, mas também não requer um estilo de vida.
A referida repetição, inclusive, pode se dar no mesmo contexto fático, desde que, acumuladas, tenham potencial vulnerante ao ofendido, que possuam o fim de excluí-lo ou desestabilizá-lo e, por fim, gerando a deterioração do ambiente profissional.
Como se trata de processo cumulativo, os atos reiterados precisam se dirigir contra a mesma pessoa, ainda que não exclusivamente contra ela. Ademais, o referido assédio não requer relação hierárquica, gize-se.
A despeito da fórmula utilizada pelo legislador no artigo 34, §2º, III, a ausência da previsão da conduta omissiva no referido conceito enseja dúvida sobre o intento do legislador em puni-la. Para alguns, haverá possibilidade de, por analogia, suprir a lacuna legislativa involuntária; para outros, qualquer extensão o seria in malam partem.
Muito menos indica-se que essa prática se restrinja ao escritório profissional do referido advogado. Conquanto haja limitação a ocorrer no exercício profissional ou em razão dele, pode incidir quando a vítima for agentes públicos, magistrados, delegados e policiais ostensivos, desde que possam atingir o ambiente profissional em que labutam. Até porque o artigo 44 do Código de Ética da Advocacia assevera:
“Deve o advogado tratar o público, os colegas, as autoridades e os funcionários do Juízo com respeito, discrição e independência, exigindo igual tratamento e zelando pelas prerrogativas a que tem direito.”
Citamos, como exemplo, a conduta do advogado que, quando comparece a audiências em determinada Vara Criminal, profere ofensas pessoais ao magistrado respectivo, desestabilizando-o pelas palavras aviltantes proferidas, causando deterioração daquele ambiente profissional.
Tal dispositivo visa claramente reforçar a necessidade do advogado atender a um dos pilares do exercício de sua profissão, que é a atuação com urbanidade, que nada mais é que a garantia de que o trato com terceiros deve se dar de forma amistosa, independente da beligerância existente na contenda em julgamento. No Código de Ética da Advocacia, esse tema compõe o Capitulo VI, que prevê expressamente tal dever.
Do assédio moral e a plenitude de defesa
Há se ponderar sobre a plenitude de defesa do júri e os debates mais acirrados no âmbito do plenário.
Acreditamos não ser razoável incidir a referida infração, quando o exercício profissional é realizado em face do imperativo constitucional de plenitude da defesa (artigo 5º, inciso XXXVIII, CF). Até porque, nesse caso, o objetivo do advogado não é excluir ninguém de suas funções ou de desestabilizá-los emocionalmente,mas sim promover a mais pujante defesa de seu cliente.
Parece claro que tal dispositivo não incide sobre condutas tomadas durante o calor do debate, como em audiências, sustentações orais ou mesmo no Tribunal do Júri, onde o uso de expressões por vezes entendidas como fortes não podem ser impedidas, sob pena de cercear o próprio direito de defesa do constituinte.
Aliás, a imunidade que o advogado possui deve estar dentro de sua atuação e só é defensável quando decorrer do exercício da atividade, do momento, da necessidade de sua atuação (REsp 1.731.439).
Dessa forma, a novel norma não impede o exercício legítimo de defesa, mas contribui para a prevenção dos excessos, da falta de zelo e de decoro.
Assédio sexual: conceito e diferenças
Nota-se que o conceito de assédio sexual da Lei nº 14.612/2023 não traz os mesmos contornos do tipo penal do artigo 216-A do Código Penal.
“Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.“
Na definição dada pela Lei nº 14.612/2023, é prescindível a ascendência inerente a emprego, cargo ou função. Até porque o legislador equiparou a “proposta unilateral” à “imposição contra a vontade do assediado(a)”. Vejamos:
“art. 34, §2º, II – assédio sexual: a conduta de conotação sexual praticada no exercício profissional ou em razão dele, manifestada fisicamente ou por palavras, gestos ou outros meios, proposta ou imposta à pessoa contra sua vontade, causando-lhe constrangimento e violando a sua liberdade sexual; (Incluído pela Lei nº 14.612, de 2023)“
Por isso a figura insculpida como infração ético-disciplinar é um tipo de mescla normativa entre a importunação sexual (artigo 215-A do CP) e o delito de assédio sexual (artigo 216-A).
Outro ponto digno de nota é que não há mais distinções quanto à condição da vítima, que pode ser homem, mulher, transgêneros etc.. O(A) próprio(a) advogado(a) pode ser vítima.
Novamente, a despeito da fórmula utilizada pelo legislador no artigo 34, § 2º, III, a ausência da previsão da conduta omissiva no referido conceito enseja dúvida sobre o intento do legislador em puni-la. Para alguns, haverá possibilidade de, por analogia, suprir a lacuna legislativa involuntária; para outros, qualquer extensão o seria in malam partem.
Prática de discriminação e o indevido elastério conceitual
Nesse ponto, podemos afirmar que a redação legislativa foi imprecisa. O legislador poderia ter se utilizado de fórmula consagrada em leis de regência (a exemplo da Lei nº 7.716/89, que foi recentemente alterada pela Lei nº 14.532/2023), a qual vincula a conduta indesejada a motivo ou em razão de raça, cor, etnia, procedência nacional etc.. Ao revés, optou por uma redação diferente e bem mais aberta.
“art. 34, §2º, III – discriminação: a conduta comissiva ou omissiva que dispense tratamento constrangedor ou humilhante a pessoa ou grupo de pessoas, em razão de sua deficiência, pertença a determinada raça, cor ou sexo, procedência nacional ou regional, origem étnica, condição de gestante, lactante ou nutriz, faixa etária, religião ou outro fator. (Incluído pela Lei nº 14.612, de 2023)“
A utilização da expressão “outro fator” criou um indefinido mecanismo de interpretação analógica. Até porque o legislador já tinha sido exaustivo na disciplina de múltiplas (e pouco homogêneas) situações de possível incidência conceitual; afinal, até a condição de “nutriz” havia sido mencionada.
A suspensão disciplinar como regra
A jurisdição disciplinar não exclui a comum e, quando o fato constituir crime ou contravenção, deve ser comunicado às autoridades competentes, nos termos do artigo 71 do Estatuto da OAB.
Esse mecanismo acaba reforçando a natureza subsidiária e autônoma do Direito Penal, vez que alcança somente àquelas infrações disciplinares mais graves.
Perceba-se que, nos termos do artigo 37, inciso I, a prática de assédio moral, assédio sexual ou discriminação (inciso XXX do artigo 34 do EOAB) sujeita o advogado infrator, em regra, à pena de suspensão, a qual promove a sua interdição do exercício profissional, em todo o território nacional, pelo prazo de trinta dias a doze meses (§ 1º do artigo 37).
Importante salientar ainda a independência de instância entre a apuração criminal e a aplicação da sanção disciplinar, ou seja, o processo no âmbito administrativo não fica paralisado aguardando a análise da matéria penal e nem o contrário. Os dois, inclusive, podem correr em paralelo e serem objeto de compartilhamento de provas, desde que garantido o sigilo daquilo que é colhido no âmbito correcional interno da OAB[2].
Dessa forma, a suspensão do exercício profissional é a pena-régua fixada pelo EAOAB, que pode ainda ser aumentada em casos de maior gravidade.
Crimes infamantes e a pena de exclusão
Sabido que a regra é a aplicação da suspensão, quando é que tais condutas podem conduzir o advogado à exclusão?
A resposta passa por saber quando o crime perpetrado pode ser considerado “infamante”. Isso porque, no caso de crime infamante, a pena administrativa não é mais a de suspensão, mas sim a de exclusão.
“Art. 38. A exclusão é aplicável nos casos de: II – infrações definidas nos incisos XXVI a XXVIII do art. 34. XXVIII – praticar crime infamante.” (EOAB)
Não existe um conceito legal acerca dos crimes ditos “infamantes“, o que traz alguma dificuldade e incerteza nesse caso.
Além disso, o conceito de crime infamante não se restringe ao leque de interesse do EOAB, pois tal nomenclatura é utilizada em outros importantes diplomas legais brasileiros. O artigo 1573 do Código Civil é um exemplo disso.
Fato é que a doutrina costuma restringir exemplos de crimes infamantes a infrações como estelionato, apropriação indébita, furto, corrupção ativa ou passiva.
Mas não há nada que amarre a aplicação desse conceito aos crimes com fundo patrimonial; na verdade, infrações de cunho discriminatório, sexual ou moral aceitam ainda melhor esse rótulo. O que importa é evidenciar se a honradez e pundonor da referida categoria profissional foram colocados em risco.
Em outras palavras, a referida definição funda-se no habitus tão bem preconizado por Pierre Bourdieu. Conceitua-o como uma matriz cultural que predispõe os indivíduos a fazerem suas escolhas e aceitá-las. Não se afirma que crimes são fomentados na e pela Advocacia; contudo, o que é considerado infamante aos preceitos mais caros da classe pode sê-lo.
[2] Nesse sentido, julgado do Conselho Federal da OAB: RECURSO N. 49.0000.2016.000140-2/OEP.
Os autores:
Adriano Sousa Costa é delegado de Polícia Civil de Goiás, autor pela Juspodivm e Impetus, professor da pós-graduação da Verbo Jurídico, MeuCurso e Cers, membro da Academia Goiana de Direito, doutor em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Goiás (UFG).
Diogo Crosara é sócio do Crosara Advogados Associados e pós-graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Universidade do Grande Rio (Unigranrio).
Sauvei Lai é promotor de Justiça do MP-RJ, membro-auxiliar da AJCRIM/STF da PGR e professor de processo penal.
Nota referencial: o artigo original foi publicado no site Conjur (